Viajando pelo interior do Congo - Parte 3

Recebi em 18/07/2022

Eu mesmo, numa pose especial para a posteridade, tendo às costas a floresta congolesa... e alguns pés de deliciosos abacaxis...

Trajes próprios para viagem...

Nunca esquecendo de que esta foto foi tirada no longínquo ano de 1970, quando eu ainda tinha 32 aninhos...


VIAGENS PELO INTERIOR DO CONGO – parte 3
Marcial Salaverry



Eu ainda não sabia, mas a viagem de regresso iria me proporcionar uma das noites mais aventurosas de minha vida.


Como seria uma viagem sem escalas (assim pensava), iríamos tomar uma outra estrada (estrada?), que deveria encurtar o cami-nho, sem as passagens pelas cidades visitadas na vinda.


Logo de início, minhas sombrias previsões começaram a acontecer.

Se a outra estrada tinha muitos buracos, poderia dizer que este buraco tinha alguma estrada.

Mas resolvemos prosseguir assim mesmo, na ilusão do caminho mais rápido.

Felizmente não estava chovendo.

Calculamos que seria uma viagem para umas 12 horas, mais ou menos.

Doce ilusão.

A cada quilometro percorrido, a coisa piorava.

Por vezes, era melhor entrar pelo mato e tentar outros caminhos.

E o jipe resistia heroicamente, sabe lá Deus como.

A uma certa altura, tivemos que parar, pois havia uma manada de búfalos selvagens repousando.

Não era nada aconselhável incomodar os “bichinhos”, pois o búfalo é um animal extremamente irritadiço e perigoso.

Então nos dedicamos a apreciar a paisagem, e comer os deliciosos abacaxis que Alexander foi buscar no mato.

Já tinha chegado à conclusão de nunca chegaríamos naquela noite em Kinshasa, como estava previsto.

Como essa “estrada” não passava por nenhuma cidade, somente tínhamos duas alternativas: ou passar a noite no jipe, ou tentarmos fazer um “pequeno desvio” de 20 quilômetros, para chegar a uma das muitas missões católicas que existem no interior do Congo.

Quando os “simpáticos bichinhos” resolveram voltar ao passeio, tomamos a decisão de fazer o desvio, e procurar a Missão Santo Agostinho.

E lá fomos nós, enveredando por um caminho um pouco pior ainda.

O valente Land-Rover ainda resistia, mas começava a fazer alguns ruídos estranhos e arrepiantes.

Em determinado trecho, após  haver vencido outra cratera, escutamos o famoso “plac”, indicativo de que algo soturno ocorrera.

O jipe simplesmente parou, cruzou os pneus e se recusou a continuar a caminhada.

E agora, José?

Parado no meio do nada, num local em que possivelmente haveria uma passagem anual de algum outro veículo e, pior ainda, sem ter a mínima ideia do que poderia ter ocorrido.

Solução?

Simples.

Alexander iria até a pé até  a missão (apenas 16 quilômetros de ca-minhada), e eu ficaria, “para tomar conta do jipe”.

Não estava disposto a caminhar tudo aquilo, pois já estava quase anoitecendo e teria que andar no mato.

Decididamente, não seria a melhor maneira de praticar o salutar esporte da caminhada.

Fiquei...

Mas antes tivesse ido, pois quando começou a escurecer, literal-mente comecei a ver “as coisas pretas”.

Não sabia ainda, que as feras gostam de passear à noite.

Fiquei sabendo, ao identificar a sombra de alguns leões, rodeando aquela enorme lata de conservas, que é como acreditava que os leões estavam encarando aquele jipe.

Lá trancado,  com uma reserva de água e de frutas, estava quase tranquilo.

Foi quando uma das leoas resolveu conferir o prazo de validade do alimento (eu), e subiu no capô do jipe.

Deitou-se calmamente, e começou a olhar curiosamente para o interior do carro.

Para tentar assustá-la, acendi a lanterna bem sobre seus olhos, que faiscaram com a luz.

Ao invés de assustada, ficou irritada, e deu uma patada no parabrisa.

Assustado fiquei eu, e apaguei imediatamente a lanterna.

Comecei a sentir a mesma sensação de desconforto que devem sentir as sardinhas dentro da lata.

A amável visitante, resolveu encerrar a visita, e com uma sensual espreguiçada, desceu do jipe, e desapareceu no mato.

Isso, depois de ficar trocando olhares durante mais de 1 hora.


Com o correr do tempo, percebi que o socorro só poderia chegar pela manhã, o que realmente era o mais lógico, pois alguém, para encarar aquela estrada á noite, teria que ser a mais insana das criaturas.

Preparei-me para passar a noite com todo conforto do Sheraton ambulante.

Logicamente a imobilidade dentro do jipe começou a cobrar seu tributo.

Comecei a sentir câimbras nas pernas e, pior ainda, certas necessidades fisiológicas.

Mas,  tanto para esticar as pernas,  como para outros alívios, precisaria descer do jipe.

Cadê coragem?

Quando eu tentava me convencer de que os leões tinham ido para outro canto, meu outro eu dizia que eles estavam lá fora, só esperando a comidinha sair da lata.

E, claro, fui ficando.

E sem conseguir dormir, pois os ruídos da noite, e os rugidos das feras conseguiram me manter bem acordado.

Com o amanhecer, as coisas melhoraram.

O socorro logo chegou.

O mecânico da Missão descobriu que tinha sido o eixo que havia partido.

Levou-nos a reboque para a Missão, onde seria feito o conserto.

Tudo isso levou mais de 24 horas.

Pelo menos consegui me recuperar das emoções daquela noite de terror.

Ao ver pronto o conserto, senti um quase desânimo de saber que tinha que encarar novamente “aquela estrada”.

Bem, fazer o que?

Tinha que voltar.

Felizmente a Missão não ficava muito longe da verdadeira estrada asfaltada que conduzia a Kinshasa e assim, com um “ligeiro” atraso de 48 horas, consegui chegar em casa, onde fui recepcionado por Neyde e pelos meus filhos.

Ao terminar o relato, Ruy Hasson,  um outro brasileiro maluco que vivia em Kinshasa, disse-me:

Puxa, isso quase que dá um livro...

É, amigo Ruy, estou procurando fazer isso, com 30 anos de atraso.

Mas, “antes tarde do que nunca”...

Mas, ainda tem mais.

Depois de viver esse "lindo dia", desejo a todos que tenham UM LINDO DIA, bem diferente desses que contei acima...

Como sempre, muito tenho a agradecer ao meu querido Amigão, por permitir, com sua proteção para este doido aqui,  que eu esteja aqui contando o que vivi...

Anterior Próxima Crônicas Menu Principal