Morte no asfalto

Recebi em 02/08/2017


Como já dito em meus anteriores escritos, por prescrição médica, tenho bem cedinho dado minhas obrigatórias caminhadas diárias, limitadas a cinco voltas no quarteirão onde moro. Não é fácil, pa-rece-me ser uma mega-maratona.

Hoje, deparei com algo que despertou-me um misto de indignação, tristeza e piedade. Literalmente colada no asfalto estava uma pomba, com a espessura de seu corpinho reduzida a de uma folha de papel. Foi atropelada e inúmeras vezes amassada e amassada, amassada e amassada, pelos veículos passantes. Isso deve ter acontecido na tarde do dia anterior, já que por ali passei cinco vezes ontem pela manhã e nada vi.

Próximo aos restos mortais estava um inquieto pombo, aquele que deveria ser seu companheiro, como que à espera do milagre de uma ressuscitação. Foi-me passado que os pombos são fieis quando casais. Com a palavra os adeptos da columbofilia.

Receoso de que também o pombo fosse impiedosamente atropela-do, interrompi minha caminhada e ajoelhei-me para descolar do asfalto aquela massa disforme que outrora voava livre e liberta por paragens sem fim. Um idiota freou seu carro bem próximo a mim e buzinou. Ignorei-o e terminei o que me tinha proposto fazer. Ao voltar para a calçada com a pombinha na mão, “meu semelhante”, ao passar por mim, gritou: “tá doido pra morrer, né velho?!” Pelo espelho retrovisor ele deve ter visto meu desprezo de não receber nenhuma reação de minha parte, nem um olhar... Tinha em minhas mãos algo infinitamente mais importante que ele.

O pombo, como que conformado e satisfeito com minha atitude, alçou voo para o infinito. Coloquei a “pasta mumificada” ao meu lado, no mesmo meio-fio em que me sentei e comecei a meditar. Seria uma pomba que vislumbrou um petisco, quiçá um pequeno miolo de pão, para levar ao seu filhote ávido de fome, que a espe-rava de bico aberto no ninho. Não medindo consequências, concen-trada no alimento achado, incautamente colocou sua vida em se-gundo plano e foi atropelada por um motorista insensível que deve ter passado sobre ela como quem passa sobre uma casca de laran-ja.

Olhando para os despojos, senti meus olhos lacrimejarem e pensei no filhotinho agonizante em seu ninho, sem entender por que fora abandonado. Por que sua mãe não o abrigou sob suas cálidas asas, da chuva inclemente que caiu durante a noite? Imaginei quantas vezes seu companheiro fiel procurou-a em um esvoaçar frenético e sem rumo, sentindo sua falta, até que finalmente a encontrou, po-rém sem vida..

Meus pensamentos foram interrompidos por um amigo e vizinho que julgou estar eu passando mal e ofereceu-se a me ajudar a voltar para casa. Sem entrar em detalhes, disse-lhe que estava bem, apenas descansando da caminhada.

__ Por que choras então? Sentes alguma dor?

__ Sim, mas logo vai passar. Fique tranquilo!

__ Vou avisar alguém em tua casa que não estás bem, fazendo menção de pegar o celular.

__ Não! Obrigado, vou até dar uma corrida para te mostrar que nada sinto – OK?

Levantei-me, dei uma olhada de soslaio para a pombinha e corri, corri o mais que pude, até a exaustão e com a mente ocupada em tentar saber a razão do motorista não ter desviado ou parado o carro para evitar o atropelamento. Na volta seguinte já um gari varria a rua e em meio ao lixo lá estava o corpinho dela, confundido com as folhas igualmente mortas e caídas de suas árvores.

Ave Columba Mater! Quis o destino que não voltasses ao ninho.

Perdeste a vida na ânsia de bem tratares teu querido filhotinho.

Agarro-me à esperança de que te substitua o teu fiel companheiro.

Que ele logre acabar de criar teu filho, que cresça belo e fagueiro!

Ary Franco



Fundo Musical: Toselli Serenade (E som de pássaros)
 

 
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