Águas de lago

Recebi em 05/01/2021


Quando o outono se aproximava, ele sabia que as folhas iam todas para o chão e nenhuma ficaria presa nas árvores, com exceção das “Evergreens”, aquelas que são usadas para enfeitar as casas no na-tal.

Ele sabia da beleza do lugar e colocou uma cadeira entre as árvo-res, onde apreciava as águas calmas do lago, com sua querida com-panheira, uma caneca de café fumegante. E pensava em como foi parar naquele lugar. Tinha como companhia apenas o vento, as ár-vores, as águas do lago, os esquilos, veados, ursos e corujas. Ele sempre amou a natureza e mesmo na época de caça, preferia agora ver as atividades dos caçadores do local.

Na época que foi transferido para o novo trabalho, agradecia a Deus todos os dias por não ter mais tempo de pensar no passado. Os dias de grande angústia estavam se afastando dele. Morar num lugar onde ninguém de duas pernas era vizinho próximo tornou-se um alívio. Todas as tentativas anteriores de convivência só deram certo por algum tempo. Aí vieram as decepções e o trabalho pas-sou a ser tudo que tinha. A solidão passou a ser companheira e o som da televisão e a musica eram bálsamos para sua sensibilidade aguçada.

Aprendeu a cozinhar do seu modo. Fazia grandes panelas de ma-carrão e frango e, cuidadosamente, separava em porções dentro de recipientes. Congelava. Todas as noites tirava um dos recipientes do freezer e o separava para comer na hora do lanche no trabalho.

O tempo passava e fez alguns amigos fiéis. Dificilmente saía para se divertir e o computador, o telefone e os joguinhos eram especi-ais para matar o tempo, além dos shows de televisão. As salas de cinema mais próximas estavam a algumas milhas dali e sempre que tinha uma folga ia assistir aos filmes que gostava.

Não frequentava igrejas, apesar de ter Deus no coração o tempo inteiro e os ensinamentos de religiosidade ainda estavam muito presentes no seu cotidiano. O carro grande era um grande compa-nheiro e a moto, que adorava, ele vendeu para o único irmão, depois daquele acidente que quase lhe custou a vida. Naquela casa aprendeu a sentir medo, solidão, pequenas alegrias e saudades.

Enfim, era tempo de se conscientizar que o tempo havia passado e que estava envelhecendo, que logo ia se aposentar, passaria a cui-dar dos pais idosos e visitar os netos umas duas vezes ao ano. A cadeira do lago seria sua amiga para sempre. Ah sim, o lago logo seria puro gelo e ele poderia pescar através de pequenos buracos. Difícil mesmo era dirigir naquela quantidade de neve. Muitas vezes os amigos vinham e abriam caminho para que o grande carro pu-desse passar.

Ele adorava o trabalho. O uniforme era pesado e como estava fora de forma, o cinto machucava muito. As botas formaram esporões nos pés. As dores nas costas eram constantes, de tanto levantar pessoas necessitadas e levá-las ao hospital. O orgulho de ser um bombeiro de ambulância falava mais alto. E aquele dinheiro que recebia todo mês era mais que abençoado.

A pequena casa foi tomando forma de um lugar querido e habitado por uma pessoa linda. Os amigos doavam móveis e com o tempo ele mesmo foi comprando tudo que precisava. Era uma vida, era sim! Não precisava de mais nada. Já havia plantado árvores, não escreveu um livro, teve filhos, grandes amores e pequenos amores também, sorriu e chorou, amou demais e de menos. Agora era hora de sentar na cadeira do lago e esperar as folhas verdes voltarem com força.

Apesar de amar a solidão, sempre pensava que alguém poderia sur-gir e ser sua companheira para a velhice, que ainda estava um pou-co longe. Teve algumas namoradinhas, mas nada que pudesse tor-nar-se algo sério. As tentativas anteriores de viver com alguém não funcionaram como ele esperava.

Um dia, uma pessoa de muito longe se aproximou daquele lago, através dos fios mágicos da internet. As folhas voltaram a ser mui-to verdes, a velha cadeira ainda está lá (ou não). Durante alguns meses ele foi se desfazendo do lago e de tudo que o cercava.

Ele nem olhou para trás quando entrou naquele enorme avião que o trouxe para um lugar cheio de sol e muito barulho, onde perma-nece até hoje.

Tem uma outra cadeira na pequena varanda, onde a fiel caneca de café fumegante ainda o acompanha, onde ele pode ver os detalhes dos arredores e, no lugar de esquilos, ursos e veados, tem uma ca-chorrinha que adora latir e mostrar que é feliz do seu lado.

Sempre aos Domingos, outubro de 2013
Ilustração: Lago Nokomis, Tomahawk, Wisconsin, quase Canadá.

Sunny L (Sonia Landrith)
Enviado por Sunny L (Sonia Landrith) em 13/10/2013



Fundo Musical: Absolute Love - Ernesto Cortázar
 

 
Anterior Crônicas Menu Principal