E agora João, como fica?

E AGORA JOÃO, COMO FICA?
Sá de Freitas

Oi João, estou me dirigindo a você porque sei que se não puder me ouvir agora, daqui uns tempos vai:

Você morava, não muito longe da minha casa, num Bairro pobre, sob o teto de um casebre em lastimável estado.

Digo morava porque você deixou este mundo ontem.

Ah! Mas lembro-me de você, sim.

Como me levanto cedo, algumas vezes o surpreendi, de mochila às costas, esperando o ônibus rural que o levaria ao canavial, onde, no meio das canas queimadas, iria suar, sangrar as mãos nos brotos afiados que sobravam e se sujar todo na fuligem que o fogo deixou.

E como você não sabe o que é fuligem, pois não teve tempo de aprender a ler, explico-lhe que assim se chama aquela coisa preta que o fogo deixa nas queimadas sufocantes que os poderosos fazem, sem se importarem com a dificuldade que vão causar à respiração dos semelhantes.

Bem...Você, entre tantos, ia lá e trabalhava duro de manhã a tarde, cortava um montão de cana, mas quando vinha o conferente, sempre marcava a menos a sua produção para enriquecer mais o dono da Usina.

Pegava o ônibus de volta, chegava em casa, apanhava o pedacinho de sabão da pia, porque sabonete não tinha, quando a sua esposa gritava que não havia água porque foi cortada por falta de pagamento e que ela apanhou um pouco na casa do vizinho para cozinhar e matar a sede das crianças.

Conformado, você roubava um pouco para lavar as mãos imundas e se sentava à mesa, rodeado de quatro filhinhos que, junto com você, bebiam a sopa rala que lhes era servida.

Provavelmente você sofria por dentro ao ver as crianças mal nutridas, amarelas, fraquinhas e com roupas remen-dadas.

Sei que por bom tempo você vai sofrer ainda onde está, pensando nos “bacuris ” e na esposa que ficaram comple-tamente desamparados, porque a Assistência Social em nosso País não faz nada, com os funcionários de braços cruzados, esquentando as cadeiras com os bumbuns volumosos, com as funcionarias lixando as unhas, falando de novelas ou lavando a língua com fofocas.

Mas isso ainda não é nada porque a pensãozinha que o Instituto da Previdência vai pagar é mais miserável ainda do que aquele que você ganhava.

Os religiosos, na maioria, não irão à porta da casa que você deixou, porque você não dava o dízimo para eles construírem suas mansões.

É triste “ ” João? Mas fazer o que? Você foi nascer logo no Brasil. Que azar, não?

Mas vamos deixar pra lá porque outro assunto está surgindo:

Você talvez não sabia, porque não tinha TV, que dias antes de você, também uma jovem, cantora famosíssima, deixou esse mundão.

A causa da sua morte não foi a da parada cardíaca, como a sua, causada por excesso de trabalho e por má alimentação.

Ela vivia confortavelmente em sua mansão, comprava o que tinha vontade e o mundo inteiro a bajulava.

Ela se foi levada pelas drogas. Que bom exemplo ela deixou, não é?

Bem... O mundo ainda lastima a sua despedida, a Imprensa continua fazendo o seu sensacionalismo e mesmo na Internet, coisa que você somente ouviu falar, o assunto vem fazendo eco, com lamentações e comentários, por ela que cometeu um suicídio involuntário, ou será involuntário mesmo!

Esse mundo é ingrato “” João.

Você que lutou por sua família, nem bebia, nem fumava, não fazia mal a ninguém, não foi lembrado e nem sua ida lamentada, a não ser pelos seus poucos amigos.

Você não vai se encontrar com essa moça tão endeusada, porque para descer daí e ir lá onde ela está, vai lhe ser impossível.

Fique tranquilo grande homem.

O bons amigos espirituais vão lhe explicar que Deus não desamparará a sua família.

Seus filhos vão crescer e mesmo que tenham que trabalhar duro como você, serão alguns dos poucos esteios que ainda mantém a nossa dignidade.

Dignidade que está sendo devorada pelas drogas, pelos crimes e pela corrupção.

E agora João, como fica?

Você, pobre, honesto e trabalhador está sendo recompensado neste lugar para onde foi.

E a moça famosa? Deus que tenha piedade dela.

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Samuel Freitas de Oliveira

Avaré- SP- Brasil





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