Esta noite eu vi Fellini


         Às vezes não sei o que se passa em nossas cabeças que, de repente, nos tornamos obcecados por uma rotina qualquer. No meu caso, há muito que parara de fazer minhas caminhadas rotineiras, tão recomendadas pelos médicos. Pura preguiça. Na tentativa de enganá-la, reiniciei alterando os horários. Ora caminhava pela manhã, ora caminhava à noitinha. Ora caminhava pela beira da praia, ora caminhava pelo calçadão. Até que decidi, finalmente, enfrentá-la. Não sei se por ser muito responsável e ter a consciência de que necessitamos de exercício, este fato começava a me incomodar... Assim, após nobre luta interior , aos poucos fui conseguindo superar a preguiça.

            Normalmente ocorre que, quando se reinicia  a rotina, recuperamos aquele bem estar característico. Tornamos a valorizar aquela horinha de exercício e, felizes, reparamos que com ela recuperamos o nosso valioso momento de meditação. Eu normalmente a levo muito a sério. Nela encontrei soluções de problemas que, a princípio, se desenhavam confusos. Inspiração para rabiscar algumas linhas nas minhas amadoras crônicas e versos. observei que muitos nem gostam de encontrar pessoas conhecidas para não interromperem o ritmo do exercício ou da divagação. Confesso, eu também. Quando muito, com um olá ou um tudo bem, procuramos manter uma cerimoniosa distância que iniba a aproximação.

            Neste clima, me descobri caminhando no início da noite. De guarda-chuva, pois chovia bastante. Além de mim, pouquíssimos se aventuraram a sair naquela chuva. Até sentia um olhar orgulhoso dos que cruzavam comigo como a dizer: - nós mesmos para nos aventurarmos a caminhar com este tempo!

            Com olhar perdido, ia contemplando a praia deserta. A quantidade incontável dos paus de vôlei e balizas de futebol, todos brancos, induziram-me a uma visão felliniana. Com o silêncio, a ligeira névoa causada pela chuva, algumas lâmpadas dos refletores queimadas e a paisagem esbranquiçada pela areia, deixavam a mente liberada para construir os mais diversos enredos. De imediato me ocorreu o final do filmeA Entrevista” de Fellini. Há uma tomada de cena, quase no final, mostrando um emaranhado de antenas antigas de televisão que, pela superposição de imagens, se transformam em lanças de índios a cavalo que, incontinenti, se precipitam de cima de um barranco próximo, em guerreiro ataque. A barraca em que o elenco se abrigava de torrencial chuva é cercada por eles e se inicia então uma guerra, mas sem mortes. Por momentos me imagino na infância dos homens brancos contra os peles-vermelhas. Mim ter saudades...

            Decorrido algum tempo, vem a ordem de encerrar, o filme acabava ali. Todos vão se despindo de seus personagens. Vinhos e Panetones são distribuídos entre os participantes com votos festivos de “Buon Natale, Auguri”. Era Natal... Como fundo musical, a mocinha loura, com graça e sentimento, interpreta La Dolce Vita na solidão de um sax.

            Na última cena, um galpão deserto. Os focos dos refletores direcionados para o chão, dão um único sentido à luz. Ouve-se agora apenas a voz grave de Fellini a comentar:

            - O filme deveria acabar aqui. Aliás, terminou. Parece que ouço a voz de um antigo produtor a indagar:

            - Acaba assim, sem um fio de esperança, um raio de Sol? Dê-me ao menos um raio de Sol! Suplicava ele nos meus primeiros filmes.

            - Um raio de Sol Quem sabe, podemos tentar...

            Se para eles era o final da produção, para mim era o despertar da vontade de rever o filme no retorno a minha casa.

            Agora o vento está mais forte e frio. Luto para manter o guarda-chuva aberto. Com um pedaço de saudade, aqueço-me o quanto posso. O barulho das rodas no chão molhado, me retorna ao presente. Evitando as poças d’água vou ziguesagueando pelo calçadão como se brincasse de andar apenas sobre as pedras brancas. Antes de atravessar a rua, levado por doce impulso, volto-me para trás. Talvez pelo simples desejo de gravar aquele singular cenário para sempre. Vejo nesse instante o vulto familiar de um homem encapotado sentado no banco, como se seco o banco estivesse. Fixo o olhar, para melhor identificá-lo. Com um suplicante olhar, acena em minha direção e me pede:

            - Dê-me, ao menos, um raio de Sol... Com ternura respondi: - Quem sabe, podemos tentar!

            A imagem lentamente se dissipa...

            Juro que era Fellini...

Domingos Alicata
Rio de Janeiro - RJ - 05/07/2005




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