A onda


             Final de tarde... Lentamente o Sol se retira por trás das suaves montanhas de Copacabana. Enquanto aguardo por uma onda para voltar à praia, admiro este doce espetáculo. A água deliciosamente morna, coisa rara nesta época de outono, faz-me bem ao corpo e à alma. Algumas nuvens se agrupam no horizonte a indicar que uma provável chuva se aproxima, mas isto só torna a paisagem mais linda. É como se dois mundos diversos se confrontassem em enigmática mensagem. Prefiro fixar-me no lado alaranjado do céu onde o Sol se deita e, repetindo o exercício de anos, intuitivamente admirar a imagem do Cristo Redentor em Sua incansável missão de abençoar a cidade. Lentamente volto o meu olhar para o Morro da Babilônia, local preferido na minha infância quando subia ao seu cume para admirar a paisagem que se descortinava de Copacabana... O absoluto silêncio, entrecortado apenas pelo cantar das aves e o deslizar do vento pela vegetação, deixava no ar um sentimento encantador de paz. Era ainda por sobre a Babilônia que, aproveitando o sudoeste, empinava minhas inesquecíveis pipas nas primeiras tentativas de atingir o céu...
            
A dura realidade me devolve ao presente... Este espaço hoje está ocupado por grupos armados e os confrontos entre as milícias e os traficantes viraram rotina. Balas traçantes em macabros desenhos iluminam as noites que deveriam ser de paz. Triste contraste onde viveram Ary Barroso, Portinari, Sacha, o folclórico Chita, a doce voz portuguesa de Ester de Abreu, Emilinha
Borba... As noites inesquecíveis e românticas reforçadas pela passagem do Pedro das Flores, no seu tradicional smoking, a distribuir sorrisos e belas flores em troca de pequenas e espontâneas contribuições. Lógico que esta singela oferta, seguida de um carinhoso beijo, nos permitia atingir com profundidade o coração da amada. A noite revestia-se de novo encantamento. Hoje restou um doce aroma de saudade...
            
Enquanto divago, finalmente a esperada onda se apresenta ao longe! Vem crescendo à medida que se aproxima da arrebentação. Com vigorosas braçadas nado em sua direção buscando o ponto exato para montá-la. Desde criança que aprendi a descer nela sem auxílio de prancha, apenas com os recursos do meu próprio corpo. Chamava-se a esta prática, "pegar jacaré", mas não me perguntem por quê... Hoje, fruto do marketing, transformou-se em "surf de peito" e já conta com campeonato e patrocínios.
            
Agora o Sol praticamente me concede apenas restos do seu brilho e estou na mais absoluta solidão do mar. Procuro ainda, em minha doce ilusão, retroagir no tempo e encontrar na praia os olhares admirados de outrora das meninas a exclamar, entre sorrisos nervosos próprios da idade, palavras de admiração para definir o meu destemor. Quanto maior a onda, maior a manifestação... Envolto na minha juvenil vaidade, chegava eu à areia acompanhado por um corpo bronzeadamente saudável. Nele o Sol desenhava a sua mais bela tonalidade e os músculos se distribuíam com o vigor da idade na mais perfeita harmonia...
            
Com novas braçadas atinjo a posição em que a onda finalmente me acolhia para iniciarmos a sua descida. Foram tantas no decorrer da vida, mas esta parece especial... Sinto-me como a cavalgar um corcel irrequieto ao qual me agarro à sua crina para não cair. Ao se curvar, ela deixa gotículas suspensas no ar que, sob o efeito dos últimos raios do Sol, desenham um pequeno arco-íris ao meu redor. Aqueles segundos ganham o sabor da eternidade... Naquele momento já não consigo definir se é o homem ou a criança que galopam naquela onda. Entre a emoção e a branca espuma da desfeita onda, um velho corpo insiste em se transformar em um sonho que se nega a terminar. E assim, indefinidos, finalmente chegam à areia.
            
Na total ausência do Sol, as luzes de Copacabana finalmente se acendem. Sinto, ao final de tudo, a nítida sensação de que minha alma se dividiu... A do eu-menino corre livre e sonhadora pelo antigo e paradisíaco Morro da Babilônia. A do eu-rapaz permanece deitada na areia molhada enquanto as ondas retornam para acariciá-la. A velha alma, por sua vez, segue pela praia
num caminho indefinido a repetir Guimarães Rosa: - "As pessoas não morrem, ficam encantadas".
            
Certamente todas procuram seu melhor encantamento enquanto o meu corpo resta perdido na materialidade da vida...

Domingos Alicata
Rio de Janeiro - RJ - 29/06/2008




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