Reminiscências – Rua São José – Ouro Preto – Minas Gerais


           Rua de minha infância lembro-me muito bem. Morava na Rua das Escadinhas, primeira casa à esquerda de quem desce. Eu só descia pra ir ao adro da Igreja do Pilar e ir ver a minha avó paterna, além da família de meu padrasto. E para as confissões, na Igreja. De resto, a saída era a Rua São José. Meus avós maternos moravam nesta rua, minhas grandes amigas também. As melhores amigas moravam parede-meia. Saía de casa, virava a esquina. Quando chovia, mão no poste de ferro e pedra que ficava na esquina do passeio, outra mão na pedra do sobrado dos Moreira Pinto, com o Bar do “Seu Lana” em baixo, choquinho passando pelo corpo. Lá ia eu, me equilibrando no meio fio para, seguindo conselho de minha tia, consertar o pé meio tortinho. Deu resultado. De manhã ce dinho, Grupo Escolar Dom Pedro II. No caminho, na Rua São José, passava pela casa de Januário Gomes e Eponina Elias, antiquária; o fotógrafo Gustavo, único na cidade; parava no Bar do Pacheco, quando tinha uns tostões, pra comprar ovinhos de chocolate, com casquinha fininha, colorida. Era raro, mas gostoso. Depois, a casa de minha avó; na frente, a Venda de Zé Elias, irmão de meu padrasto. Tinha de tudo em pedra sabão naquela venda. Tinha a farmácia, o Bar do Professor, o engraxate, a casa onde morava a professora de violino, Eunice Trópia, que me colocava um ovo cru debaixo do braço e eu tomei pavor e fugi das aulas. Mais à frente, a Loja de Almiro Neves, que ainda existe. Quase em frente, a Associação Comercial, onde havia lindos bailes de Carnaval. Em frente, o Bar do Crispim, com seus deliciosos sorvetes e picolés caseiros, areia fininha no chão pra evitar que os pingos melassem e o aroma das maçãs argentinas, tão raras e tão caras, que adorávamos adoecer só pelo gosto de comê-las. Na virada da rua, logo após a Casa de Tiradentes, a frente do CAEF, Clube Acadêmico da Escola de Farmácia, onde, mocinha, dançava muito. No final da rua, o Cinema Central, o alfaiate Marzano, com seus “modelos” na porta, o Hotel Toffolo, a Loja de Jorge Kassis, a Casa dos Contos, sem as modificações modernas. Tinha amiga que residia ali e brincávamos sempre no porão, que era baixinho, escorregadio e lúgubre e não, como o deixaram agora, parecendo um grande salão de festas. Uma pena!

           Sempre havia uma neblina quando saía de manhã. Era lindo de se ver e revigorava o organismo, creio mesmo que o protegia de doenças respiratórias. Sempre me encontrava com os tropeiros trazendo lenha pros fogões: levavam pelos alçapões dos casarões até o quintal. O estrume dos animais eram catados e ensacados pelos meninos que vendiam para, misturados à terra, se transformar em ótimo adubo.

           Quando passava pela Ponte dos Contos, via o círculo formado pelos quintais das casas da Rua São José, Rua das Escadinhas, Rua Paraná. Um círculo quase perfeito.

           À tarde, brincávamos no quintal, que chamo de lado avesso da Rua São José, pois andávamos por todos os quintais, onde não havia cercas separando-os. Íamos a todas as casas passando pelo quintal, colhendo folhinhas e fazendo barro pra fazer panelinhas e brincar de cozinhadinho.

           À noite... ah, nossa grande alegria, no Largo da Alegria, jogando queimada, debaixo do poste com base bem alta, no centro da Praça Silviano Brandão, onde em seguida, começava a Rua do Rosário. Além do jogo de bola de meia, pulávamos corda, brincávamos de passar anel, sentados na calçada da casa de Ester Hermini. Uma vida sem grandes preocupações e bem segura.

Aos domingos, o mesmo trajeto para irmos à Missa das 10 na Igreja do Carmo. Aí, em vez de subirmos a Rua das Flores, no final da São José, passávamos em frente ao Cinema Vila Rica, subíamos a Rua Direita. Na volta, sessão das 11 e depois, ajantarado em casa, família reunida. Muitas brincadeiras.

           Já mocinha, delícia era fazer o “footing” à noite: os rapazes na calçada, parados, olhando as moças, muito bem arrumadas, andando de quatro em quatro, indo e voltando, no meio da rua. Era quando flertávamos e muitas começavam um namoro assim. Época de recato e timidez, o rapaz precisava ser muito senhor de si para se aproximar e “pedir namoro”, como chamávamos. Eu, muito tímida, embora risonha, não dava abertura pra nenhum deles se aproximar. Fugia dos galanteios. Nunca arrumei um namorado no “footing”. Arrumava sim, nas “horas dançantes” e nos bailes de gala.

           Na época de comemorações cívicas, havia Parada de Colégios e desfilávamos pela Rua São José com grande orgulho. Eu, muito alta, sempre estava entre as porta-bandeiras ou dividindo o pelotão, com o uniforme lindo, saia pregueada azul marinho, cumprimento abaixo dos joelhos, blusa branca de fustão, lapela azul marinho com frisos brancos e imitação de gravata na frente e boina da mesma cor da lapela e da saia. Sapatos Vulcabrás pretos e meias, brancas, até acima das panturrilhas.

           No Carnaval havia desfiles de blocos na mesma rua e carros alegóricos, construídos de maneira artesanal, em carrocerias de caminhões comuns, enfeitados com muitas cores e com pessoas fantasiadas. Enquanto desfilavam, das varandas dos sobrados, jogávamos serpentinas e confete e apertávamos os cilindros de lança perfume. Se alcançava os olhos, ai, que dor, ardia muito.

Na Semana Santa era maravilhoso acompanhar as procissões que passavam todas pela Rua São José. Os andores no centro, no meio da rua e os fieis, de cada lado, piedosos e rezando com muita fé.            Figuras bíblicas e anjos de roupa de cetim colorido, com arminho nas mangas e barras, plissados e asas feitas com pena de pato. Para a procissão de Aleluia cobriam-se os paralelepípedos de flores, cobrindo desenhos com motivos sacros e nas janelas e varandas, as colchas e toalhas mais bonitas, bordadas à mão ou à máquina, para comemorar a Ressurreição de Cristo.

           Os trotes dos estudantes, que ingressavam na faculdade, passavam em passeata pela mesma rua, com apelidos que permaneciam pela vida acadêmica e muitos ficaram definitivos. Eles tinham as cabeças raspadas, usavam placas com os apelidos que ganhavam nas Repúblicas de Estudantes, na época, todas mantidas pela Escola de Minas ou Escola de Farmácia, as melhores da América do Sul.

           Todos aproveitávamos muito os momentos de festejos cívicos, pagãos e religiosos.

           E tudo passava pela Rua São José, rua das minhas lembranças mais bonitas e singelas.

Sônia Maria J. Sogawa
Contagem - MG

Esta crônica foi publicada no livro "A Família Ouro-Pretana",
com textos de 34 autores, organizado pela
Academia Ouro-Pretana de Letras, lançado no dia 25 de agosto de 2011,
em comemoração aos 300 anos de Ouro Preto.




Fundo Musical: Opera nº9 - In Mi Bemol - Maurizio Mastrini
(
Opus nº9 - Frederic Chopin)
 

 
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