Uma família Brasileira na África
 
Recebi em 06/07/2022
 

UMA FAMÍLIA BRASILEIRA NA ÁFRICA
Marcial Salaverry


Quando alguém se propõe a viver em um país estranho, tem que estar pronto para o que der e vier, pois sempre teremos que nos adaptar aos usos e costumes vigentes nesse país, já que é impos-sível, que o país se adapte à nossa maneira de viver... parece lógico, não?

Agora uma mudança radical como a que fizemos, realmente, revê-la um grau de insanidade mental, única condição que permitiria adaptação a usos e costumes tão diferentes dos nossos.

E teríamos que fazê-lo, se quiséssemos viver lá.

Logo no primeiro domingo, fomos ao “Libre Marché”, que era, digamos, a Ceasa de lá, e os primeiros choques, pois os hábitos alimentares dos congoleses, eram demasiado peculiares para olhos ocidentais.

Vejam, mais ou menos, partes de seu menu, e que foram assistidos pelos 3 pares de olhos ávidos recém chegados:

Entrada: Um gostoso sanduíche de Coca-Cola... Como?

Sanduíche de Coca-Cola?

Sim... basta pegar um pão, cortá-lo ao meio, e despejar a bebida nele...

Qual o problema?

Acompanhamento: Um nutritivo sanduíche de *mandruvá...

Mas... mandruvá?

Sim, mandruvá...

Vocês conhecem o mandruvá?

Aquela lagarta que dá no pau podre?

Pois bem, é ela o recheio do sanduíche.

Cumpre salientar que são vendidas no mercado, vivas, lépidas e faguei-ras, em cestos de bambu cheios de terra.

O interessado corta seu pão ao meio, dirige-se ao vendedor, compra 2 ou 3 daqueles bichinhos apetitosos... ainda vivos... coloca-os dentro do pão, e... voilá... eis um delicioso Mc Mandruvá... Apetitoso, não?

Prato Principal: O prato principal, que deleitava os congoleses, era (creio que é ainda), a XIKWANGA.

Para quem quiser a receita, aí vai, em seus pontos básicos:


Inicialmente, pegue uma mandioca, e, após ralar, embrulhe-a numa folha de bananeira.

Em seguida, deixe ao sol para curtir, até ficar bem com aquele cheirinho delicioso de mandioca podre.

Tempere a gosto.

Eis o banquete, pronto para ser degustado... se alguém quiser experimen-tar... por favor, não me convide, porque às vezes, relembrando as coisas de lá... ainda sinto aquele aroma penetrante no ar...

Delicioso...

Geralmente, essa delícia pode ser comido com acompanhamento de peixe seco ao sol.

Sobremesa:  Que tal... por exemplo... deliciosos siriris... sim é aquele mesmo siriri que conhecemos... aquele bichinho altamente incomodativo que vem atraído pela luz nas noites quentes.

Outra opção, são as deliciosas baratas, com recheio natural de creme chantilly...

Muito nutritivas...

Bem, devo esclarecer que tais baratas não são tão repelentes quanto as nossas... são brancas, bem maiores... com bastante recheio...

Talvez possam ser encontradas em lojas de produtos importados...

Se descobrirem, não precisam informar...

Bem, após as rápidas pinceladas sobre os saudáveis hábitos alimentares dos congoleses, existem muitas outras particularidades que naturalmen-te despertam a curiosidade de qualquer pessoa, sobretudo de crianças, como meus filhos, que tudo queriam saber... tudo perguntavam... e haja paciência para tentar explicar o porque das coisas... principalmente porque, andando pelas ruas, apontavam para as pessoas, e perguntavam “discretamente”, como faz qualquer criança curiosa:

“Olha pai, aqueles dois africanos de mãos dadas... dois homens grandes assim... de mãos dadas na rua?”.

E toca explicar que entre os africanos é comum os homens se abraçarem, se beijarem (também na boca, pai? Sim, também na boca, para eles é normal), e, principalmente, andarem de mãos dadas.

“Olha pai, o cabelo daquela mulher lá...

Que gozado... como elas fazem isso?”

E toca explicar que aquele penteado esquisito, uma espécie de imitação da Torre de Pisa na cabeça da africana, era feito usando-se uma armação de arame, entrelaçando-se os cabelos devidamente enrolados em estilo “rastafari”...

Tentem imaginar...

“Olha pai, aquela mulher tá fazendo xixi na rua”...

O processo é simples, as congolesas (do povo, lógico) não usavam peças íntimas, e se vestiam, com os panos enrolados em torno do corpo... e daí, se sentiam alguma necessidade fisiológica, simplesmente paravam no meio da rua, separavam as pernas, e... pronto.

Sem problemas.

Lá não havia necessidade de banheiro público.

Essas eram algumas das curiosidades que pudemos observar, sobre usos e costumes locais.

Existiam outras peculiaridades que serão comentadas posteriormente, à medida das oportunidades.

Vamos falar um pouco da cidade de Kinshasa, “Kin la belle”, como a cha-mavam os locais.

Pode-se mesmo dizer que realmente, dentro dos padrões africanos, era uma bela cidade... pelo menos no lado, digamos, europeu da cidade, onde viviam os europeus e alguns dos congoleses endinheirados, tais como políticos (sempre eles), comerciantes, autoridades.

Esse lado poderia ser comparável a qualquer cidade brasileira (claro que cidade de porte médio), com altos edifícios, boas avenidas, tudo asfalta-do, um razoável serviço de esgotos, clubes, teatros, escolas, hospitais, enfim, uma cidade normal.

Agora o lado popular, era deprimente... sujeira por todos os lados... esgotos a céu aberto... dificuldades para tudo, principalmente de trans-porte... que era verdadeiramente calamitoso... poucos ônibus, caindo aos pedaços, superlotados (chega a ser familiar? Pois é...).

Esse terrível contraste, sempre deixava as coisas em pé de guerra... sem-pre havia o perigo de alguma reação violenta, principalmente quando os europeus cruzavam essa imensa favela em seus carros modernos... em caso de pane... tinha que se apelar para os santos protetores (todos eles).

Os europeus, por seu lado, além de não se misturarem aos congoleses, também separavam-se entre si.

Os portugueses, belgas, italianos, franceses, americanos (lá eram consi-derados europeus), indianos, gregos, paquistaneses, e mais quantos sur-gissem, viviam em círculos fechados.

Cada colônia tinha sua escola, sua igreja, seus locais preferidos para diversão... havia pouca mistura.

Nunca consegui entender essa coisa... se todos eram pessoas que estavam longe de suas casas... não seria melhor uma convivência pacífica e nor-mal? ... uma interligação?

Principalmente se considerarmos que vivíamos sobre um barril de pól-vora, que não precisava de muita coisa para explodir.

A situação era tão... discriminatória, que eram até determinantes em problemas de coração.

Se, por exemplo, uma garota portuguesa quisesse namorar um rapaz bel-ga... era um Deus nos acuda... a família, os amigos, reagiam de maneira até violenta.

Houve inúmeros casos de violentas brigas em boates, iniciadas com uma inocente paquera entre inconsequentes Romeus e Julietas...

Tal desunião sempre custou caro a todos.

Devido diversos fatores, matriculei meus filhos na Escola Portuguesa de Kinshasa.

Além de manter um nível de ensino muito bom, tinha a facilidade da língua, que é... quase a mesma, e, vivíamos entre os irmãos portugueses.


Cabe aqui abrir um parágrafo, para falar sobre a gentileza com que fomos recebidos pelos portugueses... chega a ser inacreditável o carinho com que nossos irmãos europeus recebem os brasileiros, principalmente naquelas circunstâncias em que ambos éramos “invasores”, vivendo em território alheio.

Quando perguntava a eles porque não tratavam os outros... europeus  da mesma maneira, a resposta era uma só: Ora pois, eles não são brasi-leiros, pá!.

Realmente, o que nos deu forças para superar os traumas iniciais, foi a forma com que fomos recebidos pelos amigos portugueses.

Quero deixar aqui meu agradecimento, extensivo a todos os portugueses.

Ainda há muita e muita coisa a ser dita, como veremos adiante...

E sempre, com a ajuda Deus, vivemos LINDOS DIAS, e ainda estamos vivendo...

Meus filhos Iara e Alexandre, minha esposa Neyde e eu,
às margens do Rio Congo.
Os crocodilos não quiseram sair para aparecer na foto



*Segundo o Dicionário Aurélio
Mandruvá


mandorová
[De marandová, com metátese.]
Substantivo masculino.
1.Bras. Zool. Designação comum às lagartas de insetos lepidópteros enfingídeos que se alimentam de euforbiáceas, têm ger. grande porte e corpo desprovido de cerdas urticantes. [Var.: mandruvá, druvá, manduruvá, mandarová, mandaruvá, marandová. Sin.: gervão. Cf. tatarana.]