Passárgada


         O frio é apenas uma pequena concessão do carioca ao clima. Para não dizermos que somos preconceituosos, permitimos que por alguns dias ele nos visite, mas não sem antes nos prometer que não será rigoroso. Apenas o suficiente para tirarmos leves agasalhos esquecidos no fundo do armário... No entanto, com simpática reverência o acolhemos com carinho. Uns correm para as serras, para senti-lo mais intensamente. Outros preferem curti-lo em suas casas, com um bom vinho e fondue. Há, por certo, os insensíveis, que indiferentes e indelicadamente o recebem na praia.

         Para não ser descortês, evito dizer a ele que já suportei dezesseis graus abaixo de zero, pode soar como vaidade ou desafio. Isto quando a vida e eu ríamos uníssonos. Ela na sua irresponsável juventude, eu, na doce companhia da vodka. A graduação do termômetro ou do álcool era desprezada. Na festa da vida, tudo era permitido. O importante era a profunda comemoração. Dançávamos ao som das pesadas gotas da chuva que caia, do cantar cortante dos ventos, da ausência absoluta da preocupação do amanhã...

         A exemplo de Manoel Bandeira, eu também tenho a minha Passárgada, onde sou amigo do Rei. Para lá eu vou sempre que preciso refletir, curtir alegria, dores da vida, do amor... Seu império, porém, é bem pequeno. Restringe-se aos limites do Restaurante Alla Zingara. Nossa amizade vem de anos. Ela uma simples lanchonete que veio crescendo e incorporando lojas vizinhas até chegar ao seu tamanho atual enquanto eu ia sofrendo minhas doces metamorfoses existenciais iniciadas aos dezesseis anos. Na gíria dos boêmios, ali é o meu segundo lar...

         Nos dias mais frios, é lá que me refugio. Procuro, de preferência, a velha mesa que me acolhe por anos. É como ela tivesse se personificado e entendesse a essencialidade do seu silêncio. O garçom de anos já sabe que palavras simpáticas ao meu Fogão são recompensadas ao final por generosas gorjetas. E, muito importante, sabe exatamente como respeitar os meus necessários momentos de privacidade. Em algumas ocasiões o próprio Rei pede licença para sentar ao meu lado e batermos um fraternal papo. Ali desfiamos as nossas lembranças. Como toda conversa de bar, sempre recordando antigos frequentadores, suas virtudes e algumas perdas. Com certa malícia comenta sobre meu comportamento um tanto paquerador da juventude. Curioso quer confirmar como acabaram alguns antigos romances. Sempre terminamos por nos olharmos com simpatia e, em meio a uma farta gargalhada, admitirmos: - Porra como estamos velhos!

         Com um choro camarada nas minhas doses de rum, direito a descontar cheques de terceiros, alterar cardápios já sobejamente degustados há anos, vou mantendo a minha siciliana fidelidade. Sinto, às vezes, ele ou um garçom comentando com outro freguês a meu respeito. Devem confirmar que sou o cliente mais antigo do restaurante, que participei da sua inauguração, que era um moço muito educado, que viram meus filhos crescer... Do meu cantinho, dou um sorriso afável, faço uma leve reverência com minha carinha de troféu e, solene, peço mais um cuba libre.

Mas hoje, Amigos, esqueçamos o sorriso fácil, o tom alegre dos comentários acima. Ainda estou preso à recente tragédia do Vôo-3054 da TAM, que na semana passada ceifou centenas de vidas... À medida que os meios de comunicação vão divulgando particularidades das suas vidas como retratos, sonhos, entrevistas com parentes, não tem como deixar de incorporar este imenso sentimento de dor. É um luto nacional, muito profundo, revestido de indignação contra total falta de respeito à vida humana.

E, como escreveu Bandeira, quando eu estiver mais triste, mas triste de não ter jeito. Quando de noite me der vontade de me matar, vou-me embora pra Passárgada...

         Por isso hoje abracei minha tristeza, revesti-a de indignação, revi meus conceitos de felicidade e vim para minha querida Passárgada, pelo menos aqui, ainda sou amigo do Rei...

         - Garçom, por favor, mais um cuba bem chorado...

Domingos Alicata
Rio de Janeiro - RJ - 27/07/2007




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