O Susto


            Acredito que pouca gente possa imaginar quantos acidentes marítimos ocorrem, ou poderiam ocorrer, por imperícia ou irresponsabilidade de pessoas inescrupulosas. Evidentemente que se considerarmos os riscos naturais tais comotempestades, nevoeiros, cargas mal distribuídas, incêndioseste número cresce de maneira bastante significativa. Sempre ouvi comentários de que, por se navegar com o piloto automático, certos oficiais negligenciavam o seu quarto de serviço, apesar das normas de segurança definirem claramente a quem cabe a manobra, em caso de rumos de colisão. Piloto automático, esclareço, é um sistema de leme que mantém o navio automaticamente no rumo pré-estabelecido sem a necessidade do timoneiro. Quando é necessário qualquer tipo de manobra, passa-se o comando para a posição manual e o timoneiro assume a manobra. Assim que a situação que a motivou for superada, retorna-se à posição automática. Ele normalmente é acionado em viagens longas para poupar o marinheiro, que pode assim se dedicar a outras atividades durante o seu quarto de serviço. Nos navios mercantes, cada quarto de serviço tem a duração de quatro horas e é exercido pelo Piloto e o Marinheiro.

            Na viagem de retorno Liverpool x Recife, a meio caminho navegado, avistei no horizonte um navio que vinha em rumo de colisão. O Imediato veio me render para o jantar e o alertei sobre a situação. Normalmente o Imediato passa a exercer funções mais burocráticas, porém não menos importantes - carregamento do navio, contato com a estiva, receber a alfândega, disciplina a bordo - ficando livre da rotina de navegação, competência esta dos Pilotos e do Comandante. A sua única obrigação, pelo menos na minha época, era render o Piloto de serviço nas horas das refeições. Observei que ele não deu muita importância a minha observação. Desci preocupado e com e o meu sexto sentido disparando um sinal de alerta. Ao chegar ao salão de refeição, somente o 1° Piloto restava no recinto. Como sabíamos que o Imediato não era muito ligado à navegação, comentei por alto a situação do navio que se aproximava. Incontinente ele se levantou dizendo que iria verificar. Pela rapidez do momento, tardiamente observei que ele estava bastante alcoolizado. Decorridos poucos minutos, a minha responsabilidade falou mais forte e, deixando a comida servida no prato, subi correndo para o passadiço. Preocupava-me, inclusive, o fato de que, pela rota dos navios, competiria a nós a iniciativa de alterar o curso.

            Ao entrar no passadiço, vi os dois em pânico. O Imediato acusava o Piloto de ter mexido no piloto automático e, por isso, não estar atendendo à mudança para a posição manual. Por sua vez, o Piloto retrucava acusando o Imediato de não ter manobrado com mais antecedência. O marinheiro, impotente, observava aquela caótica cena. Resumindo, a colisão era iminente.

A guarnição, após o jantar, normalmente servido às 17:00 h., reunia-se no convés para conversar e, com certeza, acreditava ser uma manobra proposital para passarmos junto ao navio panamenho. Felizmente ainda era dia e a atmosfera limpa permitia uma boa visibilidade. Como a manobra competia a nós, podia imaginar como o Piloto do outro navio deveria estar apreensivo. Rapidamente corri para o piloto automático tentando decifrar o problema. Para meu alívio, observei que naquele momento de nervosismo tinham deixado a alavanca do piloto automático em uma posição neutra, nem automática nem manual. Torcendo para que fosse somente isso, ajustei-a para a posição manual e girei todo o leme para boreste (direita). Ao sentir que o navio respondia à manobra, respirei aliviado. Nunca em minha vida tive uma sensação tão grande de alívio. A guarnição, divertida, acenava acreditando ser simplesmente uma manobra ousada para passarmos próximo ao outro navio. Alguns tripulantes do outro lado também nos acenaram e assim seguimos o nosso curso. Claro que foi impossível manter o episódio restrito apenas a nós. Em pouco tempo a verdade transpirou, tornando-se o ocorrido em assunto constante nos dias que se sucederam...

Como não poderia deixar de acontecer, o Comandante passou a tirar o quarto junto com o 1° Piloto, até que chegássemos ao próximo porto – Recife – onde foi solicitado o seu desembarque.

Apesar da gravidade do ato, sempre fica aquela tristeza pelo colega penalizado. Sóbrio era um bom companheiro. Mesmo bebendo-se bastante nos portos, em viagem foi o único caso grave que pude presenciar, pelo menos nos navios em que viajei.

No entanto, meu lado boêmio e solidário o perdoou. Por mais que insistíssemos, jamais confessou o motivo real que o levou a beber tanto naquele quase fatídico dia.

Coisas que só o mar, na sua profunda solidão, poderia deci- frar...

Domingos Alicata
Rio de Janeiro - RJ - 16/03/2005




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