Mistério


        Eu não estava lá por ocasião desta ocorrência, mas embarquei no retorno do navio ao Rio. Naquela viagem, ele se dirigia ao Canadá e, segundo relatos, estavam sob intensa tempestade. O Comandante reuniu a tripulação para decidirem sobre a conveniência de arribarem (entrar em porto não planejado em função de emergência ou mau tempo) ao porto mais próximo, New York, em face de uma iminente possibilidade de naufrágio. Com exceção do Imediato, a decisão unânime era de que se arribasse naquele porto. Inconformado, o Imediato repetia sucessivamente: - Não podemos arribar, temos que seguir...

Como esta insistência já estava começando a causar irritação aos tripulantes que, com certeza, nessa altura estavam bastante apreensivos, o Comandante decidiu-se pelo consenso geral.

Já era tarde da noite e todos, com exceção dos que estavam de serviço, se retiraram para seus camarotes e mudou-se o rumo para New York. Na manhã seguinte, quando o marinheiro de serviço foi acordar o Imediato para iniciar a sua rotina, encontrou a porta fechada. Normalmente em viagem dormia-se com a porta semi-aberta, presa somente pelo seu gancho. Isto era uma forma de se precaver para que, em caso de colisão, a porta não ficasse emperrada e, além do mais, facilitava a entrada do marinheiro no camarote para acordar os tripulantes de sono mais profundo. Isto era feito rotineiramente meia hora antes dos seus quartos de serviço.

Preocupado dirigiu-se ao Comandante para informá-lo do fato. Ato contínuo, com auxílio de outros tripulantes, reiniciou a bater com insistência na porta, com a certeza de que algo de grave havia acontecido. O Comandante finalmente chegou com a chave-mestra e conseguiram abrir a porta... Com surpresa, verificaram que o camarote estava vazio. Notaram, no entanto, que a vigia estava aberta e sinais de sapatos marcavam a parede. Não foi difícil deduzir que ele havia se atirado ao mar. Apesar da consternação de todos, a viagem prosseguiu.

Foi neste clima que no retorno do navio embarquei no Rio de Janeiro para iniciar nova viagem. Tivemos de arrolar todos os seus pertences para entregar à família. Como era casado e tinha filhas pequenas, alguns presentes tinham sido comprados, deduzindo-se que não havia uma pré-disposição ao suicídio. Era um homem muito inteligente. As promoções eram feitas de acordo com o “tempo de mar” e a conclusão dos cursos específicos que se fazia na própria Escola de Marinha Mercante. O candidato poderia desembarcar e freqüentar as aulas durante o ano ou, como ele fazia com brilhantismo, simplesmente estudar por conta própria e se apresentar para prestar os exames finais.

Não é difícil imaginar como foi esta nova viagem. O Imediato que assumiu, dormiria no mesmo camarote. Nada mudaria, apenas os pertences. Por mais que ele tentasse disfarçar, era evidente o desconforto com a situação. Mesmo nós, ficávamos apreensivos com o “sobrenatural”.

É oportuno ressaltar que um navio mercante à noite, assume ares lúgubres. Para facilitar a visibilidade no passadiço, as luzes eram apagadas e apenas a da sala de navegação, onde ficava a mesa com os mapas e os instrumentos de cálculo, mantinha uma pequena luz direcionada para a carta de navegação, assim mesmo separada do passadiço por uma cortina escura.

Some-se a isso o ranger natural da estrutura do navio com o cantar do vento constante e estava completo o clima de suspense. Como só ficavam de serviço um oficial e um marinheiro, quando este tinha que descer para acordar outros tripulantes, a imaginação tingia o momento com cores mais angustiantes. Qualquer barulho diferente era motivo de alerta redobrado. Prenúncio de mau tempo era interpretado como possível vingança e se esperava sempre pelo pior.

O meu camarote era composto por um quarto amplo com beliche, escrivaninha e um banheiro pequeno. Em uma determinada noite, o mar estava calmo e o navio seguia sem balançar. Terminado o meu quarto de serviço, às quatro horas da manhã, me preparava para dormir quando a porta do banheiro abriu-se bruscamente e bateu com estrondo. Não imaginem o susto que levei! O meu coração disparou e foi difícil conciliar o sono. Mas, felizmente, com o tempo superei o ocorrido.

No retorno ao Rio, o destino me ajudou e fui designado para outro navio, mas este fato, até hoje permanece vivo em minha memória. Não tive informações sobre o resgate do seu corpo, acredito que não tenha sido jamais encontrado.

Domingos Alicata
Rio de Janeiro - RJ - 07/12/2004




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