O Catador de “Latrinhas”

Recebi em 03/11/2016
 


Cair da tarde, de um dia quente de verão.

Conversava no portão com um vizinho amigo, quando observei um idoso andrajoso apalpando as bolsas de lixo depositadas em minha cestinha, que estavam no aguardo da passagem do caminhão da prefeitura para recolhê-las.

Indaguei o que ele procurava e recebi como resposta que estava catando “latrinhas” para vender.

Perguntei seu nome, era Manoel.

Penalizado com aquela figura humana, disse-lhe que naquele meu lixo não havia latinhas mas que ele poderia vir todo sábado à minha casa, que eu iria dar-lhe algumas.

Ele agradeceu-me e seguiu sua caminhada apalpando o lixo das outras casas.

No dia seguinte, visitei a vizinhança pedindo que passasse a guar-dar suas latinhas e telefonei para alguns amigos e parentes.

Foi um sucesso!

As latinhas não paravam de chegar (algumas eu tive que buscar) e até ganhei um compressor manual para amassá-las, reduzindo em menos de 1/3 o volume das mesmas.

E o sábado chegou.

Junto com ele veio o “seu Manoel” tocando a campainha.

Meio sem jeito, perguntou incrédulo: O Sr. conseguiu juntar al-guma “latrinha?”.

Convidei-o a entrar e fomos diretos ao quintal.

Eu tinha juntado umas duzentas.

Quando ele olhou aquele amontoado de latinhas, eu vi um sorriso tão sincero e feliz em seu rosto que mostrou-me até o único dente que ele tinha na arcada inferior.

Pedi para ele sentar-se, pois ainda faltava amassar algumas latas.

Ele pareceu-me meio em transe hipnótico, tamanha era sua muda satisfação.

Falou-me que não daria para levar tudo de uma só “viage” mas voltaria no dia seguinte para buscar o resto.

Em seu retorno, ao se despedir, dei-lhe um abraço e “até sábado”!

E o outro sábado chegou com sucesso igual e mais umas roupas que estavam apertadas em mim e uns pares de sapatos, com solados meio gastos foram entregues ao “seu Manoel”.

Dali em diante, o “seu Manoel” mudou totalmente.

Vinha trajando roupas que lhe dei, cabelo penteado, barba feita e contou-me de seus planos.

Iria nos dois únicos empregos que teve em sua vida, que foram os de porteiro de um edifício residencial e um salão de sinuca.

Pediria aos ex-patrões que guardassem “latrinhas” para ele.

Não mais iria “apalpar” as bolsas de lixo.

Eu tinha conseguido devolver ao “seu Manoel” a autoestima que ele havia perdido.

Ficamos amigos por três anos e quando disse que iria me mudar para Miguel Pereira, senti nossos olhos marejarem e nossa tristeza transbordou em gotas de emoção pelas nossas faces.

Pedi ao meu vizinho que continuasse minha tarefa e assim foi feito.

Tenho acompanhado o “seu Manoel” por e-mails trocados com meu amigo.

A última, foi que ele tinha sido operado da próstata mas já estava de volta à lide.

No dia da mudança ele apareceu para dar-me uma lembrança, a qual guardo até hoje.

Era uma caneta esferográfica da marca “Bic”, embrulhada em um pedaço de papel para presentes.

Para mim, um troféu conquistado pela amizade verdadeira de dois amigos!

Agradeço ao “seu Manoel” a chance que me deu de galgar mais um degrau em direção aos pés de Nosso Pai Criador!

Ary Franco
(O Poeta Descalço)  


 

 
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