O Hediondo ser Humano


(Conto dramatizado e baseado em fato real; não sei se praticado até hoje na clandestinidade, por alguns que se dizem “seres huma-nos e racionais”)
(Inspirado pelo nosso Luiz Gonzaga, na música intitulada Assum Preto)

       Fui capturado em tenra idade e aprisionado em uma gaiola, não chegando a saborear o gosto da liberdade em toda a sua pleni-tude. Apesar das circunstâncias adversas, passei a ser bem alimen-tado com comida fartamente variada e água fresca.

       Depois de um ano de idade, chegada a primavera, comecei a arriscar meus primeiros trinados, imitando e rivalizando com meus colegas de infortúnio confinados em gaiolas vizinhas. Vez por ou-tra, notava a ausência de um amiguinho que era substituído por outro mais novo. Via quando era retirado de sua gaiola e levado pelo nosso carcereiro para lugar ignorado. Eram viagens sem volta, o que muito me intrigava.

       Por entre grades via o sol nascer e se pôr, observava a chuva cair distribuindo seu gotejar pela flora à minha volta que agradeci-da me mostrava flores e frutos. Tudo inalcançável mas agradável ao ver aquele lindo e inenarrável espetáculo da natureza.

       Certo dia, inopinadamente, chegou a hora de ser eu resgatado da minha gaiola, imobilizado e levado para um quarto em que tive meus olhos perfurados. A última coisa que recordo ter visto em mi-nha vida foi a ponta de uma agulha aproximar-se de minhas reti-nas. Cego fiquei, colocado de volta em algo que assemelhava-se a uma outra gaiola que pareceu-me menor.

       Permaneci estático, impossibilitado de alçar vôo para algum poleiro cuja existência ignorava existir. Permaneci estático, sem atrever a locomover-me. A dor que sentia em meus olhos era lanci-nante a aterrorizava-me não saber onde estava, para onde poder ir, cativo de uma eventual eterna inanição.

       Dia seguinte, com fome e sede, senti alguém empoleirar-me em um dos dedos de sua mão. Na palma dela estava farta quanti-dade de sementes e frutas picadas. Não me fiz de rogado, comen-do até saciar-me. Logo em seguida foi-me injetada, goela abaixo, uma razoável quantidade de água.

       Passados uns três meses, já estava acostumado à cruel rotina mas inconformado com o meu doloroso sofrimento. Era relativa-mente feliz, jovem, com toda uma vida alvissareira pela frente e, de repente, sofro aquela inexplicável barbárie, hedionda e injusta.

       Fui vendido como pássaro ensinado e comprado por um estra-nho seduzido pela minha imposta mansidão e bom comportamento ao ar livre. Passada as instruções de como deveria ser tratado, fui levado pelo meu novo e encantado dono, aboletado num dos dedos de sua mão. PODE FICAR SOSSEGADO QUE ELE NÃO FOGE!!! Gritou meu algoz para meu novo dono.

       Adentrou ele em sua casa, dividindo seu entusiasmo com espo-sa e filho. Vejam que pássaro lindo, penas brilhantes e negras que nem carvão. É mansinho, mas teremos que colocá-lo numa gaiola para sua própria proteção contra algum gato ou cachorro.

       __Papai, posso segurar ele um pouquinho?

       __Pode, mas com cuidado para não machucá-lo.

       __Ele não quer vir pra mim, parece cego!

       __É verdade! Fui enganado! Vou lá devolvê-lo àquele miserá-vel que me enganou!

       Escutando isso, temeroso de voltar ao antigo cárcere e depen-der das mãos daquele que me tirou a visão, pensei: “Ele deixou-me cego, mas não mudo”. Entre trinados e gorjeios entoei a mais linda canção que podia.

       Todos se encantaram. Descobriram que me tocando suave-mente no peito, eu trocava imediatamente de mãos; passava para o outro dedo que se oferecia. Depois me colocaram no ombro e assim fiquei sendo testado por um bom tempo, tornando-me o quarto membro daquela Família que carinhosamente acolheu-me definitivamente.

       Ganhei um luxuoso viveiro para minha guarida e o tempo e o instinto ensinaram-me a localização e distância dos três poleiros, assim como os locais em que ficavam a comida e a água sempre fresca e renovada. Em nossos passeios matinais, era a atração da rua em que morávamos. Passava mais tempo fora do viveiro, do que dentro dele.

       Ainda sinto o calor do sol e ouço a chuva caindo na vegetação, tornando-a mais verde, os jardins mais colorido e as árvores mais frondosas.

       Hoje estou velho, mas paradoxalmente aprendi a não viver triste. Sou feliz e agradecido ao Deus em que tanto falam aqui em casa e que deve Ele ser meu também!

Ary Franco
(O Poeta Descalço)



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